domingo, 29 de janeiro de 2012

Famílias e Acompanhantes...


No hospital do ICRC todos os doentes têm direito a um acompanhante. Claro que o direito se associa a um conjunto de deveres: os acompanhantes são responsáveis pelos cuidados de higiene, pela alimentação do doente, por fazer a cama, ...

Vindo de um país europeu em que uma boa parte dos acompanhantes se divide em “não-existentes” ou em “totalmente desadequados e não-colaborantes” a realidade do Paquistão é ilustrativa de outro mundo. Como muitos dos nossos doentes vêm de zonas rurais (onde o emprego é essencialmente agricultura ou pecuária de subsistência), toda a família se desloca ao hospital e permanece à porta até ter notícias e, frequentemente, até à alta.

É surreal ver como os familiares se acomodam no chão da enfermaria, em cobertores sem colchão ou tapete (eles têm uma sala/quarto com melhores condições), só para poderem permanecer junto do familiar e providenciar o que for necessário. É também interessante ver como colaboram uns com os outros para transportar as camas para o exterior: mesmo no inverno os dias são solarengos e muito convidativos para um arejamento - há que levar a cama dos acamados e é vê-los a conversar uns com os outros pelos espaços livres do hospital.

Como é evidente nem tudo é um mar de rosas… Tendas com 11 doentes + 11 acompanhantes tornam-se barulhentas e, por vezes, entramos sem conseguir perceber quem é o doente! Nunca há verdadeira privacidade e mesmo quando entra um doente na urgência ou nos intensivos, a família permanece sempre a assistir (e a ocupar espaços preciosos)… Mas tudo se faz e até eu (que sou bem esquisita com o espaço, calma e privacidade) começo a habituar-me… :)

Doar sangue...

A importância de doar sangue nunca foi tão bem compreendida por mim. Se no conforto do meu país nunca pensei no que a falta de sangue pode significar (até porque sempre que foi necessário bastou ligar para o serviço de sangue hospitalar para, em alguns minutos, ter as unidades que precisava) no hospital do ICRC as coisas funcionam de forma bem distinta.

Por aqui o banco de sangue tenta ser autónomo: a cada doente que dá entrada pedimos para que todos os seus acompanhantes (e geralmente são uns quantos) doem sangue para o banco. Fazemos "Blood Drive" uma vez por mês e assim nos vamos mantendo. Quando falta um tipo de sangue podemos contactar uma ONG local que pode tê-lo, mas nem sempre somos bem sucedidos tendo dias de luta intensa para encontrar aquela unidade que precisamos. Eu própria doei sangue para um doente A- que estava a ser operado e para quem não conseguíamos arranjar unidades compatíveis e hoje um dos seguranças ofereceu-se para doar já que faltava uma unidade O- para um doente nos intensivos…

É importante acrescentar que o sangue doado não é separado o que implica que todos os seus componentes fiquem no saco. Desta forma, se o sangue for doado na hora, podemos ter a certeza que o doente vai receber não só o componente eritrocitário (as unidades que habitualmente utilizamos em Portugal) mas também o plasma e restantes elementos. Resultado? :) Hoje, numa hemoglobina de 6.3 que fez uma unidade de sangue tivemos um resultado pós-transfusão de 8.2... :) (o que é bem simpático, para quem não percebe destas coisas)

A sensação de doar sangue para um doente que conhecemos ou, por outra perspectiva, que vai ser utilizado já porque não há mais, faz-nos sentir muito confortáveis connosco mesmo… Percebemos que realmente as pessoas fazem a diferença e que podemos mesmo salvar vidas… Da forma mais literal que se possa imaginar…

Com este post pretendo 1) redimir-me por, até há algumas semanas, me ter mantido preguiçosamente por casa à espera que alguém doasse por mim e 2) ilustrar como no Paquistão as pessoas são disponíveis e cooperantes. Há alguns dias, após uma explosão numa vila, um indivíduo veio ao hospital com alguns feridos e quando percebeu a importância de doar sangue alugou um autocarro e voltou à vila encaminhando ao hospital 23 pessoas prontinha a doar… Não é incrível??

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Paquistão: mês e meio depois

Depois dos primeiros dias de novidades e surpresas a cada canto, cá estou a comemorar o primeiro quarto de missão completo.
Começo agora a sentir-me mais integrada na equipa do Hospital onde começo a estar mais autónoma, embora mantenha que cada dia é um desafio. Para facilitar as coisas começo a sentir-me mais confortável com a equipa de expatriados que por cá habita, sendo que em minha casa estão dois suiços com quem sabe muito bem fazer um "debriefing" do dia que passou.

Desde ontem chegou a minha malinha com comida portuguesa e sou novamente uma mulher completa: não preciso de cozinhar o arroz horripilante que por cá se vende, já tenho o meu leitinho com chocolate e um bacalhau para cozinhar com natas para o meu aniversário que se aproxima... eh eh eh... Claro que na mala vinha também uma boa quantidade de chouriços, morcelas e farinheira juntamente com o porquinho assador que me vai trazer boas noites de petiscada... :) (pena que por cá não haja broa)

Embora a vida em Peshawar seja calma (estamos rodeados por medidas de segurança), é fácil sentirmo-nos um pouquinho claustrofóbicos uma vez que pouco mais podemos fazer do que percorrer o caminho casa-hospital com o motorista. Para reverter esse sentimento posso sair de Pesh cada 3 semanas (para fins-de-semana de 2 ou 4 dias) podendo ver alguma coisa do que o país tem para oferecer aos raros turistas que se aventuram (e que inexplorado está o turismo por aqui, com tanto de bom para mostrar)...

Quanto ao que me trouxe cá: trauma de guerra a torto e a direito, tecidos a descoberto que eu desconhecia existirem e formas de lesão que parecem impossíveis... Tudo somado traz uma vontade imensa de, a cada dia, ver coisas novas. Surpreendente por cá é mesmo a forma como as pessoas chegam: sem qualquer apoio de pré-hospitalar, cada um lá arranja forma de vir ao hospital para ter tratamento, em condições que em Portugal arrepiariam qualquer um... :)

Quanto à comida (e tenho recebido várias questões neste âmbito): almoço na cafetaria do ICRC - só para expatriados, portanto com comida +/- internacional - e janto por casa cozinhando eu mesma ou em casa de colegas que lá vão convidando. Há dois dias um espanhol de outra sub-delegação do comité veio visitar o centro ortopédico de Peshawar e lá foi convidado para um jantar onde ele mesmo deveria cozinhar... Gazpacho e tortillha que me souberam a europa como há várias semanas nada me sabia... :)

A foto que junto hoje é uma foto oficial do ICRC que foi tirada no hospital, numa das minhas rondas pelas enfermarias... :) A criança com quem estou é um dos poucos doentes que fala qualquer coisa de inglês e está sempre bem disposto embora tenha chegado ao hospital com uma ferida numa perna que acabou por provocar uma osteomielite crónica (infecção no osso) e no último ano ele passou mais tempo internado do que em casa... :(

Por hoje tenho dito... :) Até breve, insh'allah.